13.11.07

Regresso ao lar



Chegas - se é que se pode chamar
regresso ao gesto anónimo
e vacilante com que vais deixando
para trás a madeira suja dos degraus.

Nunca saberás se te trouxe
um táxi, que música te roubou
- ou se a falta de dinheiro
te fez apanhar o último autocarro.

Sabes apenas que encontraste
as chaves e que não despiste
a roupa onde volta a ser teu o corpo.
Mas é-te impossível recordar
os rostos, o que disseram ou calaram,
o preço pago por tanto esquecimento.

Foi uma noite banal, portanto.
Nem amor nem sexo - apenas
a perfídia de seres tu, o espanto
com que ao fim da tarde acordas
e percebes que o mundo
não teve o bom senso de acabar.

Por isso sais - ou foges (vai dar
ao mesmo) quando os vizinhos
regressam de mais um dia proveitoso,
dedicado à mecânica reprodução
do horror, da velhice e das taxas de juro.
Eles e tu movidos pela mesma nenhuma razão.

Não há, de facto, diferença.
Ou cedo deixará de haver
e é como se nunca tivesse havido.
Os primeiros dentes de um filho
deixam-nos certamente tão felizes
como o tango que acompanha agora
estes versos escritos quase à hora de acordarem.

O desespero tudo permite, tornando
equivalentes o livro que acabaste de fechar
e as infindáveis telenovelas com que
premeiam o cansaço e garantem o sono.
Adormecendo eles e tu, apesar da diferença
horária, sobre a imagem nula daquilo
a que insistimos em chamar "amor".

Talvez amor. Não sabes. Desces
de novo os mesmos degraus,
fugindo da bonança que não há
e do irremediável flagelo dos teus passos.
Pouco tens a dizer desse
desencontro, da noite fria que te espera.

Acreditas, uma vez mais, na morte.

Manuel de Freitas (Blues for Mary Jane, 2004)

Imagem: szau

11 comentários:

Menina Limão disse...

ouch.

primeiro adorei a foto, depois arrepiei-me com o poema. definitivamente, comprei o livro errado do manuel de freitas.

Happy and Bleeding disse...

(...)

*

David disse...

isto podia ser eu...

beijinhos

V. disse...

Uiiiiiiiiiiiiiii! Para já e a começar, a imagem é simplesmente fantástica! E eu ainda estou para descobrir este meu fascínio pelas coisas tristes... mas é assim: apetece-me bater palmas a este post! E assim já saio daqui contente! Ahahahahah!

Beijinho*

menina tóxica disse...

eu só comprei este por agora limoninha. o blues for mary jane. e adorei muito muito. tenho de ler os outros :)*tóchico.

happy man, reticências para ti também (...) ;)

david,também achei que podia ser eu... bjinhos*

vanessa, oh :) palmas para o manuel de freitas e a menina que fez a foto. Bjinho tóxico*

Anónimo disse...

zombie-vidas movidas pela mesma nenhuma razão. vou levar este poema comigo*

bruno disse...

grande posta, senhorita tóchica.
(desnecessário falar do manel, a foto é soberba)
beijinho a ti, ma non troppo.

menina tóxica disse...

a. leva quantos quiseres**

bruno, a senhorita agradece feliz. bjinho tóchico :)*

Menina Limão disse...

foi curioso. deixei este comentário e no dia seguinte deparei-me com o livro.

menina tóxica disse...

bolas limão, é só coincidências eheh

Anónimo disse...

gostei...